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quarta-feira, 8 de maio de 2024

Pedra(s) no caminho

 A noite passei na salinha pequena que fazia de mesquita da estacao de essence perto de Marsa. Foi tranquilo depois do momento em que entrou um gajo com uma djeleba grossa e castanha a comer pão e que, depois de sujar o chão todo, se deitou a dormir. Teve de vir o segurança acordá-lo aos berros e acordando-me também.


Tinha um pacote de nescafé que abri e ao qual juntei água quente que pedi na cafetaria. Comi um pouco daquela papa de frutos secos que o Slama me dera e de seguida fui buscar a roupa que posto a secar na noite anterior e tentar lavar o resto que faltava. Filtrei a água da casa de banho para dentro das minhas garrafas e segui caminho. Parei em Marsa para comprar comida e encontrei finalmente uma frutaria! Já não comia fruta há imenso tempo, fruto de não encontrar uma mercearia no deserto. Soube bem os pêssegos e bananas que devorei.


Encontrei 3 rapazes que claramente não eram marroquinos a pedir boleia noutra estação de serviço. Atravessei a estrada e fui conversar um.pouco com eles. Eram australianos e vinham à boleia desde a Mauritânia e iam até Paris. Disseram-me que agora a polícia andava a controlar mais o comboio do ferro e que talvez não fosse muito fácil entrar. Vamos ver!


O resto do caminho foi completamente desértico. Fiquei com um escaldão nas pernas porque estava a usar calções. No dia anterior havia sido nos braços e mãos. Fui ouvindo músicas e podcasts. 


Houve apenas uma estacao de serviço em Lamsid onde comprei batatas fritas e ovos cozidos, mas não me pareceu um sitio agradável para ficar e ainda era cedo . Estava decidido a fazer os 80km que faltavam até Boujour, totalizando assim 180km num dia, quando 40km depois encontrei uma estacao de serviço que não estava no google maps. Ja estava bastante cansado e decidi-me a ficar por ali. Deixaram-me acampar debaixo de um telheiro e cozinhei massa com caldo knorr e atum.


O cansaço acumulado fez-se sentir na manhã seguinte quando acordei com o corpo extremamente dorido. Percebi que era um sinal do corpo a dizer-me para descansar e tomei a decisão de fazer os restantes 40kms até Boujdour e descansar aí por duas noites nuns bungalows de um parque de campismo. O corpo também pedia fruta e vegetais, a primeira coisa que comprei assim que cheguei à cidade.


Aproveitei esses dias então para descansar, tomar o primeiro banho de chuveiro em 11 dias, estabelecendo um novo recorde - lavei a cabeça algumas vezes e de vez em quando consegui um banho de balde, mas não é a mesma coisa. A roupa também a voltei a lavar e pude finalmente dormir bem.


Quando acordei na minha última noite em Boujdour, senti-me enjoado e por isso voltei a dormir. Levantei-me bem mais tarde do que planeara e ainda tinha de arrumar as coisas na bicicleta e fazer várias compras para o caminho. Para fazer as várias compras precisava de dinheiro e por isso também precisava de ir ao multibanco.


Calhou ser o dia em que quase nenhum dos atms tinha dinheiro. Devo ter percorrido todos os multibancos de Boujdour até conseguir levantar 100 dirhams.


Já passava das 13h quando consegui fazer-me à estrada e isso fez-me ir com mais pressa do que queria. Sentia-me cansado da manhã e cansado por causa do sol e do calor. Talvez por este cansaço ou talvez pela distração, não consegui desviar-me de uma pedra do tamanho de uma bola de futebol e passei sobre ela com a bicicleta. O pneu de trás furou automaticamente e tive de mudar a câmara de ar à beira da estrada, deixando que todas as malas se enchessem de areia e desesperando cada vez que um carro passava, pois isso provocava uma nova onda de vento e areia.


Ainda parou um motociclista francês que me ajudou a colocar o pneu de volta na roda. Quando me fiz à estrada senti que alguma coisa não estava bem e de facto a roda não estava centrada. Ainda parei uma vez durante o caminho e outra já num restaurante a tentar entender se este descentramento fora causado pelo embate ou se colocara mal à roda. Iam-se juntando várias pessoas tentando ajudar mas apenas causando mais pressão. Estive algumas horas a tentar entender o problema e notei que o proprio pneu não tinha enchido uniformemente. Desisti e fui dormir, completamente exausto.


Fiz 70km no dia seguinte até que o pneu se esvaziou outra vez. Fiz o esforço de chegar até a uma bomba de gasolina onde passaria a noite e no dia seguinte tentaria apanhar boleia de um camião para Dakhla, onde arranjara um contacto de uma loja de bicicletas.


Cheguei a Dakhla pelas 9 da manhã numa carrinha de um amigo dos polícias que estavam a fazer uma operação na estrada e a quem pedi ajuda. Resolvemos a questão da roda - era um problema na tensão dos raios que, com o embate, se terão desregulado - e tentei voltar a apanhar boleia tudo para trás para percorrer os kms que fizera de carro. 


Ninguém parou à excepção de uma carrinha que me levou 10km para fora de Dakhla. Como Dakhla era uma península, isso não me livrou do vento e dos 15kms talvez mais demorados que fiz até agora, com vento de frente e areia constantemente. Não sentirei saudades desta cidade, foi um período bastante stressante e até que conseguisse sair chegar à estrada principal tive de empurrar a bicicleta durante uma tarde inteira, de vez em quando esticando o dedo e tentando a minha sorte sem ter sorte.


Dormi noutra estação de serviço e dadas as dificuldades dos dias anteriores escolhi deixar o ego de lado e seguir caminho, ao invés de tentar voltar para trás e refazer aquele troço de bicicleta.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Dias que passam com o vento

 O primeiro dia com o Slama foi de descanso. Dormimos até tarde e depois demos um passeio pelo deserto. Mostrou-me os campos que já tinha cultivados e de onde esperava mais tarde colher vegetais e ver crescer um olival. Levou-me a ver a grande cisterna onde armazenava a água das chuvas que aconteciam apenas 4 ou 5 vezes num ano. 


  Tinha também um grande lago que se enchia através de uma bomba muito barulhenta e que se encontrava a uma altitude superior a todo o terreno, para ser mais fácil de regar, utilizando a força da gravidade.


  Vivia numa pequena cabine que construíra e que dependia da luz solar captada pelos vários painéis que haviam ao lado da casa e por baixo dos quais os 3 cães de guarda dormiam.




  Dizia-me sentir-se feliz ali, não gostava da confusão da cidade. O seu grande sonho era, também, ir para a Europa trabalhar, mas com o pai doente e sendo ele o filho mais velho, escolheu ficar. Ali ia criar o seu negócio e poder ganhar o dinheiro necessário para enviar os outros irmãos para Espanha!

  Tirei-lhe algumas fotos que coloquei no google maps e ajudei-o a inscrever-se no Workaway, para talvez mais tarde receber ali voluntários. Assim, poderia ter mais visibilidade e a visita de alguns outros viajantes que estivessem de passagem.

  Com ele aprendi muito sobre a vida no deserto, sobre os animais que existem, sobre os sonhos de quem ali vive.

  Estava em contacto com o Daniel Estima, que tem o canal de youtube "Os Andamente", desde o início da minha viagem. Ele e o Gonçalo (canal "De mochila às costas") tiveram a ideia de descer África num carro velho de 500€. Sabíamos que eventualmente nos iríamos encontrar, mas como eu estava ali e eles a chegar a Agadir... porque não?

  Como ele me disse que se no dia seguinte fizessem os 400km até onde eu me encontrava, conseguiam chegar ao final do dia, não hesitei em ficar mais uma noite. Para além disso, gostava da companhia do Slama e da sua forma descontraída de levar a vida. Por ele, claro que era na boa ter lá mais dois portugueses naquela noite!

  Fiquei o resto do dia a ler e a escrever na companhia de um amigo do Slama enquanto ele  foi a Guelmim comprar algumas coisas para essa noite. O Daniel e o Gonçalo chegaram perto do pôr do sol, e fomos buscá-los à estrada na scooter, o que deu umas filmagens incríveis como eles nos mostraram mais tarde.


  O Slama e dois amigos puseram umas mantas no chão e começaram uma fogueira e ficámos a noite a conversar através de um aparelho tradutor que os Andamente usam nos vídeos. Depois, um dos amigos foi buscar um saco com carne de dromedário e com a qual se fizeram espetadas - e que deliciosas eram! Comemos isso e depois sardinhas e para sobremesa melancia! 

  A combinação só ficou ainda mais inusitada quando, no deserto, choveu durante 5 minutos!

  Foi uma noite única, poder estar ali com dois portugueses que ainda por cima são pessoas que eu admiro e que vivem as coisas da mesma forma que eu. Partilhámos experiências e histórias, receios relativamente a cada uma das aventuras. Eu tinha muitas perguntas a fazer mas também respondi a imensas. E acima de tudo, rimos muito! Fazia-me falta uma noite assim



  Ainda ficámos no famoso carro a conversar até bastante tarde e depois fomos todos dormir na apertada cabine. De manhã escrevemos no capô do carro e gravaram uma pequena entrevista comigo e dissemos adeus. Seguíamos pela mesma estrada mas em velocidades diferentes.

  Tinha 100km para fazer até Tantan. A única povoação nessa direção e onde me esperava o Youssef, amigo do Mustapha e que me acolheu em sua casa. O caminho era feito de estradas infinitas onde à volta não havia nada. De vez em quando alguns camelos passeavam perto do asfalto e era possível vislumbrar uns montes ao longe. De resto, apenas vento.

  Em Tantan o Youssef deixou-me um apartamento só para mim e não me deixou pagar as 3 sandes que comi ao jantar. Gostei dele e foi pena não ter ficado mais tempo, mas agora estava com motivação para pedalar muito! No dia seguinte, já chegado à costa, fiquei num abrigo de rochas à beira da estrada onde infelizmente não estava tão protegido do vento quanto isso, como se verificou ao acordar.

  Anteontem fiz os 140kms que me separavam de Tarfaya onde fiquei em casa de um pescador que, ao me ver com a bicicleta na rua, me convidou a dormir na sua pequena casa. Esta noite dormi na mesquita de uma estação de serviço depois de Laayoune e vou tentar chegar o mais próximo possível de Boujdour, que fica a 180kms! Com o vento pelas costas fica mais fácil!

  Estou a sentir-me muito motivado e com vontade de pedalar. É sem dúvida um bom momento este que estou a passar. É desfrutar!

Estou na Mauritânia!

 A pequena câmera que apontava para mim do cimo do monitor, onde o homem de camisa registava alguns dados meus, tirou a foto que vi - mais t...