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sexta-feira, 21 de junho de 2024

Até Guerguerat com companhia

  Na primeira manhã depois da dificuldade que foi a península de Dakhla, acordei bem cedo e recolhi a roupa que tinha deixado a secar mas que não secou. Tirei a bicicleta da sala das máquinas onde o rapaz me tinha indicado que seria seguro deixá-la e preparei-me para partir. Apetecia-me um "café au lait", mas disseram que custava quase 3€ e recusei. Não ia gastar num café quase o que gastaria num dia inteiro!

  O café aqui é só um: pacotes Nescafé. Para diminuir os custos, comprei vários pacotinhos e de vez em quando peço água quente e assim não tenho de pagar o triplo do preço.
Fiz 40km até El Argoub onde, aí sim, bebi uma coca cola e pude comprar coisas para comer. Aproveitei e comprei logo atum e massa para mais logo. Tive de comprar umas garrafas de água porque já começava a ser difícil de encontrar água minimamente potável, mas à parte disso sentia-me bem e finalmente a conseguir fazer a bicicletarolar. O vento ajudou-me tanto que eram 16h e já tinha feito 120km até Imlili. Aí, a Gendarmerie disse-me que teria uma estação de serviço a 2km e outra a 40km.

  Sentia-me cheio de energia portanto quis testar-me. Cheguei ainda antes do sol se pôr a essa estação de serviço que era o Caffè Busola. Um restaurante no meio do nada e onde rapidamente vi outra bicicleta com malas encostada à parede.

  A bicicleta pertencia ao Loic, um francês de barbas que ia em direção à Mauritânia para aprender árabe. Convertera-se ao Islão e tinha esta postura que já observei em várias pessoas de que o Islão é a "cura" para tudo, um quase um fascínio e idolatração por Allah - onde todas as conversas iriam eventualmente dar - mas ao mesmo tempo dotados de uma forte capacidade de debater as várias questões fulcrais e de bem argumentar.

  O dono do restaurante deixou-nos dormir na sala de rezas, devia ser algo comum porque não havia mais nada nas redondezas. Cozinhei a minha massa com atum, estava cheio de fome e percebi que o Loic não tinha jantado. Ele não trazia fogão nem tenda, e só depois percebi que ele não vinha de bicicleta desde França, mas que vinha COM a bicicleta desde França entre comboios e autocarros e só começara verdadeiramente a pedalar de Dakhla! Convidei-o para comer comigo, parecia-me algo agora muito mais natural de se fazer depois de o terem feito tantas vezes por mim. Mesmo estando eu cheio de fome, apercebi-me que se calhar as pessoas que partilharam ou que me convidaram para comer também tinham fome suficiente para comer tudo sozinhas, mas fizeram outra escolha. 

  O condutor de um camião dormiu também connosco na sala de rezas. Acordou-nos com o alarme do seu telemóvel - que demorou a acordá-lo a ele - para enfim podermos voltar nós a dormir. Partimos juntos depois de conseguirmos um pouco de internet partilhada pelo dono do restaurante. 

  (Em Marrocos há 3 grandes redes de telecomunicações: Inwi, Orange e Maroc Telecom. Esta última é a unica que funciona bem no deserto e Orange era a que eu tinha...)

  Os primeiros 30kms fizemos a um bom ritmo. A bicicleta do Loic era visivelmente bastante mais fraquinha que a minha, os travões não funcionavam e a corrente ia o tempo todo a roçar numa peça de metal. Por vezes íamos conversando, por vezes ia um mais lá à frente e outro atrás. Debatia-me mentalmente relativamente a continuar viagem com ele. Era bom ter companhia, mas haviam coisas que me soavam estranhas ou que não me davam confiança, não no sentido de me sentir em perigo, mas de antever possíveis problemas ou algum choque de expectativas e personalidade.

  Ele dizia que no caminho até Marrocos, num comboio em Bordéus, perdeu uma mala com 14 mil euros e que dias mais tarde alguém fez um tweet a dizer que encontrou 14 mil euros num comboio, nessa mesma zona. Parecia uma história inventada, mas de facto ouvi-o a falar com amigos ao telemóvel sobre isto, inclusive utilizou o meu whatsapp para enviar mensagens a amigos para procurarem tal pessoa no twitter.

  Apesar de gostar da companhia, o Loic era demasiado diferente e de certa forma desorganizado para a fase de viagem em que eu estava. Não tinha como cozinhar nem onde dormir, nem sabia que era preciso pagar visto para a Mauritania e não estava de todo informado sobre o processo da fronteira e dos desafios. A primeira fronteira africana deixava-me um pouco nervoso e não me estava a agradar ter de conciliar essa fase com outra pessoa que,  para além de ter outro ritmo, me parecia estar mais desorientada. 

  Por várias vezes tentei que nos separassemos, mas ele insistia sempre em vir comigo, em tentar acompanhar-me. Por sorte, a caminho de Guerguerat encontrámos um abrigo à beira da estrada e nao pensámos muito antes de passar aí a noite. As janelas deixavam entrar muito vento e areia, pelo que passámos um bocado divertido a construir um muro de pedras para dormirmos mais descansados. Cozinhámos massa com atum, partilhámos um chocolate que comprara. Quando se fez noite, dormimos.

  Na manhã seguinte,  não me queria demorar.e tinha-lhe dito que ia sair cedo para chegar cedo à fronteira. Ele disse, uma vez mais, que me acompanharia até a Guerguerat e que aí nos separaríamos. Chegados a Guerguerat, insistiu para que tomássemos um café juntos e, depois de utilizar o meu telemovel durante meia hora para ligar a várias pessoas, disse que talvez passaria comigo para a Mauritânia.

  Até aí tentei não ser muito frontal e deixar que ele percebesse que já estava na hora de nos separarmos. Apesar de não ter dito nada, a minha expressão facial algo deve ter indicado, de maneira que,  quando me preparei para voltar à estrada, ele disse que afinal ficaria à espera de um amigo que chegaria nesse ou no próximo dia...

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