Essa noite em Zafra não foi propriamente tranquila. Apesar de ter encontrado um lugar perto da polícia, não perguntei a ninguém se podia lá acampar. Era um pequeno lugar ao lado do que me pareceu um restaurante fechado. Tinha o espaço necessário para colocar a tenda e a bicicleta. Passavam alguns carros de quando em vez, também algumas pessoas a passear os cães de vez em quando.
Cozinhei um pouco afastado de onde guardara as minhas coisas, para não atrair atenções - não fosse alguém lembrar-se de me roubar o lugar para dormir! Ainda estou a aprender a lidar com este fogão a combustível, mas acho que hoje fiz progressos importantes porque percebi que o “wind shield” (uma espécie de folha de alumínio mas muito mais resistente e que vem com o fogão) deve ser colocado exatamente junto à panela onde cozinho e não afastado. A maneira como estava a fazer anteriormente, levava a que se soltassem labaredas incontroláveis pelos lados da panela, o que tornava impossível a tarefa simples de mexer a massa.
Espaço onde coube a minha tenda e bicicleta. Ao menos era abrigado da chuva. |
Depois de comer, fiquei a escrever até ser quase de noie e aí sim montei a tenda. A bicicleta, essa pusera-a atrás de todo o batalhão de alforges, sacos de comida e tenda, tapada pela minha toalha. Visto de fora, ninguém saberia se quem ali passava a noite era um cicloturista ou um sem abrigo... ou os dois!
Durante a noite ia acordando esporadicamente com barulhos da rua. Ora um carro a passar, ora adolescentes a conversar,... para acrescentar a isto, a noite pôs-se bastante chuvosa e ventosa, tanto que a certo ponto a tenda abanava por todos os lados apesar de abrigada.
Quando acordei ainda chovia muito e a minha vontade de sair era pouca, mas tinha de me obrigar porque não havia previsão de sol para o resto do dia. O caminho seria maioritariamente por uma estrada nacional, a N-630, só que o vento era tanto que, quando não me empurrava pelas costas, tornava-se perigoso ao tentar desequilibrar-me. Por isso, a certo ponto fui por um trilho mais abrigado até Calzadilla de los Barros, o que trouxe consigo subidas mais íngremes que me obrigaram a levar a bicicleta à mão. Aqui comprei fruta, uns donuts e uma cola que comi debaixo das arcadas da praça central.
Já estava um pouco molhado ao sair desse pueblo e no caminho também não tive oportunidade de me secar. A mais ou menos 8 quilómetros de Monesterio, a chuva fraca que ia e vinha alternadamente com alguns raios de luz deixou-se ficar por bastante mais tempo e com bastante mais força. A certo ponto, a junção da chuva forte e do vento lateral encharcou todo o meu lado direito do corpo.
A poça de água nos meus sapatos. Tive de trocar de meias. |
Passava o campo de futebol de Monesterio, mesmo à entrada da vila, quando vejo uma senhora completamente desesperada a correr de um lado para o outro com as mãos na cabeça
- O que se passa? Posso ajudar-te??
- ROUBARAM-ME O CARRO! ROUBARAM-ME O CARRO E DEIXARAM ESTE AQUI - apontando para um velho seat branco que estava ainda a trabalhar
Justamente nesse momento chegava o seu marido com dois filhos pequenos no banco de trás que, ao verem a mãe naquele desespero, começaram também a chorar
- ...mãe, tenho medo!!!
Não quis ficar mais por ali até porque estavam todos em pânico, não quis atrapalhar uma família desesperada e já se ouviam as sirenes da guarda civil. Não consegui perceber exatamente o que se passou, mas espero que se tenha resolvido. Não foi uma situação fácil de presenciar e fiquei verdadeiramente preocupado.
Descansei um pouco numa paragem de autocarros e decidi que ainda tinha forças para uns últimos 20km. Não me parecia que fosse encontrar ali algum sítio para ficar nessa noite. Cheguei a Santa Olalla del Cala pelas 16h. Era um pueblo muito pequeno e em 2 minutos o atravessava de bicicleta. Não havia muito a acontecer, nem muito lugar onde ficar. Como era domingo, quase tudo estava fechado. Ainda liguei para o numero do padre que estava afixado no painel de anuncios fora da igreja, mas ninguém atendeu… Na Guarda Civil tambem não havia ninguém… Até que me apercebi que toda a gente estava a ver o Santa Olalla vs Huelva! Assim que me acerquei do campo de futebol vi um enorme toldo… Seria esse o meu objetivo, conseguir montar ali a tenda!
A grande tenda onde iria acampar, até que... |
Perguntei à mulher da banca das pipocas e sementes de girassol, depois de explicar a minha situação, a quem devia pedir autorização para acampar ali e ela prontamente ligou a alguém. Minutos depois chegou um jovem treinador, que me disse que apesar de fecharem o estádio no final do jogo, não havia problema em eu ficar debaixo dos toldos. Por esta altura, já duas avós de jogadores me tinham oferecido café e um bolo e conversávamos todos juntamente com o Paco, que chegara um pouco mais tarde.
O Paco era o barbeiro do pueblo. Já estaria certamente na casa dos 70 mas continuava a manter o seu ofício pelas manhãs. Primeiro, ao perguntar-me se eu tinha comida e maneira de a cozinhar e de eu lhe explicar que sim, tinha massa e um fogão a combustível, obrigou-me a aceitar 20€ que tirou da carteira… e passado um pouco mais disse, já emocionado
- Porque é que hás tu de ficar tu aí ao frio debaixo desses toldos enquanto que eu, felizmente, tenho uma casa com vários quartos onde podes dormir descansado, tomar banho e secar a roupa?! Podias ser o meu neto…
Paco emocionado depois de me ter aberto as portas de sua casa |
E assim passei de não ter nada a ter tudo... Fomos ainda a um café onde me disse para pedir o que quisesse e depois ficámos em casa dele a conversar até me ir deitar. É até difícil aceitar o tanto que alguém nos quer dar de boa vontade. Não sei se realmente é assim, mas de momento acho que esta é uma dificuldade boa - porque não a tendo significaria que estaria a tomar tudo por garantido. Nesta viagem, procuro colocar as pessoas o mínimo possível numa situação de desconforto ou de "semi-obrigatoriedade de me ajudar porque lhes estou a pedir algo". Prefiro depender maioritariamente de mim e de pequenos favores como “montar a tenda debaixo do toldo”, porque isso dá abertura àqueles que vierem por bem de escolherem (ou não) fazer algo mais. E se não o escolherem, tudo bem! Tudo vem mais naturalmente.
Já sentia algumas saudades desta adrenalina de ficar até à última hora sem saber onde vou dormir. A verdade é que há sempre uma maneira, alguém ou algo.
E de repente tudo pode mudar.
Já estou em Sevilla e preparo-me para sair em direção a Gibraltar. Fiquei num hostel esta noite e dei umas voltas por aqui, mas principalmente descansei e lavei a roupa. Não tive vontade de falar com ninguém ou de socializar, de responder ao “de onde és?”, “porquê Sevilla?”, “para onde vais a seguir?”… a bateria social também precisa de ser carregada!
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