Na noite anterior acordei uma vez a meio da noite com sede. Voltei a dormir e duas horas depois já não podia com o piar incesssante dos pássaros que também escolheram aquele telheiro para passar a noite. Deixei-me ficar um pouco deitado até que me decidi a sair. Lentamente e ao som de música da minha coluna, fui arrumando tudo de volta nos alforges, deixando para último a tenda, que pus ao sol para secar a fina película de água que se formou durante a noite. Ainda estou a tentar organizar-me com os vários sacos e bolsas, onde tenho cada coisa, se atrás, se à frente! Eventualmente encontrarei um equilíbrio.
Antes de sair, subi e adiantei um pouco o selim. No primeiro dia senti que estava numa posição bastante agressiva para as minhas costas e de facto reparei que tinha o selim todo puxado atrás. É mais uma situação que vai sendo resolvida aos poucos. Eventualmente encontrarei um equilíbrio.
Passei ainda pelo Cesário para lhe dizer adeus e agradecer pela ajuda, por sorte encontrei também a Olinda que foi quem me autorizou a dormir ali naquela noite. Tirámos algumas fotografias e pouco depois estava já outra vez a caminho da Estrada Nacional 4. Tinha combinado com o João e com a Valerie ficar na quinta deles em Estremoz nessa noite, portanto tinha cerca de 95km para percorrer nesse dia - inicialmente quando tinha feito as contas achei que Vendas Novas estava mais perto de Estremoz, mas já não havia volta a dar.
Pedalei sem grandes paragens até Montemor-o-Novo. Sentia que estava numa posição bastante mais confortável. Sei que é difícil perceber ao 2º dia se as dores que sinto no corpo são da bicicleta ou do esforço da viagem em si, porque no início tudo dói e molesta. O corpo também se adapta e fica mais resistente e flexível, sei disso. Eram 11h30 quando parei no Continente de Montemor, comprei alguma fruta e frutos secos salgados, bem como dois pacotes de noodles para fazer à tarde. Estive algum tempo a descansar e aproveitar para responder ao máximo de mensagens de apoio que fui recebendo. Não estava mesmo à espera que tanta gente se interessasse tanto… É bom sentir-me assim!
Ainda me faltavam cerca de 60km e não era propriamente cedo, o que queria dizer que teria de pedalar pelo calor das horas em que o sol está mais alto. Fui pondo protetor solar, que eventualmente escorria com o suor, e tentando beber água e parar frequentemente sempre que via alguns animais. A camera já estava a ter o seu uso e fiquei contente de a ter trazido! As estradas começavam já a não ser só planas e isso era outro desafio, ainda que não tivesse apanhado nenhuma parede que me obrigasse a empurrar a bicicleta à mão, como sei que virão mais à frente.
Ao chegar a Arraiolos senti que precisava de parar e finalmente cozinhar. Eram 14h e um lugar à sombra procurava, um lugar à sombra encontrei - vi um grande parque de estacionamento de uma empresa qualquer e perguntei se podia ficar ali um pouco a descansar. Não perguntei se podia cozinhar mas assumi que estava incluído em tudo aquilo que o verbo “descansar” engloba… então pus o meu fogão a funcionar, não sem antes ter de lutar com a garrafa de combustível que tinha uma abertura “child-resistant”, que pelos vistos não era só “child”... Estava a água quase em ponto de ebulição quando
- Olá amigo! Posso-lhe ajudar em alguma coisa?
- Estou só a cozinhar! Perguntei ali se podia descansar aqui um bocado e disseram que sim…
- Descansar é uma coisa, agora cozinhar dá um bocado má imagem… sabe… isto é uma empresa… depois vêm aí os clientes… percebe?...
Claro que entendi e rapidamente arrumei tudo o que tinha, mas isto fez com que apenas pudesse comer salsichas. Só quando já tinha deitado fora a água que quase fervia me lembrei que podia ao menos ter nela posto os noodles, que com um pouco mais de tempo se cozinhariam sozinhos…
Queria estar em Estremoz pelo menos antes de ser noite, seria mesmo à justa, portanto pus música e deixei-me ir. Fui entrando numa monotonia e já nem dava pelos kms a passar, sendo interrompido quando, depois de uma subida exigente a 10km de Estremoz, senti que precisava urgentemente de energia. Comigo só tinha enlatados, comi logo feijões com chouriço que trazia comigo de Lisboa e parei numas bombas de gasolina para comprar uns chocolates. Com essa energia nova já não me custou encontrar o caminho para a Quinta Selva, como lhe chamam o João e a Valérie.
Conheci este casal em Agosto, quando a agência de viagens de aventura “Landescape” organizou nesta quinta um encontro de viajantes. Inscrevi-me porque estava já a dar os primeiros passos da preparação desta viagem que agora iniciei e sabia que precisava de ouvir pessoas com experiências parecidas, que me motivassem e que também vibrassem com as viagens. Lembro-me de ter voltado para casa, depois dessa experiência, a sentir que já ninguém me podia parar! Já sabia onde arranjar uma bicicleta: seria na “Rcicla”, a loja do Vítor, que constrói bicicletas tentando reaproveitar e reciclar o que já foi usado mas que se encontra em perfeitas condições. Já havia falado com o Pedro On the Road que tinha feito uns anos antes a mesma viagem mas até à África do Sul e cujo livro foi extremamente importante e inspirador para o que estou a fazer agora. Todo o ambiente que vivi ali, em que “viagens” era o tema sempre presente em conversa, fazia-me já viajar sem ainda ter ido.
O João e a Valérie são as pessoas mais viajadas que alguma vez conheci. Entre boleias, bicicletas e barcos/canoas, foram a quase todo o lado. Percebi que partilhamos a mesma vontade de sair e correr o mundo. Tenho pensado muito porque é que há quem tenha esta ânsia quase insaciável de conhecer o desconhecido, que não atinge toda a gente. Não me parece que tenha que ver com o estrato social, educação, nacionalidade, família ou cultura… Parece que, pura e simplesmente, sem grande critério ou regra, escolhe a uns e não escolhe a outros. Talvez durante a viagem o vá compreendendo melhor, também não consigo explicar com exatidão porque é que quero tanto fazer isto, mas acho que assim que o sentir, saberei.
Pensava que ia acampar, mas o João prontamente me convidou a entrar dentro de casa e conduziu-me ao quarto onde iria ficar. Depois de 95km não podia ter ficado mais contente! Ainda pude tomar banho e ao jantar comemos Raclette! Já tendo estado na Suíça, foi preciso vir a Estremoz para provar este prato. Estava incrível e as conversas iam saltando de continente em continente, e de repente já tínhamos falado do mundo inteiro. De facto, viajar dá-nos histórias e eu também quero um dia poder contar as minhas como contam os meus anfitriões que, pelo seu entusiasmo, fazem parecer que voltaram dessas viagens há uns dias e ainda têm tudo fresco na memória! Ouvi de como viajaram de bicicleta um ano na China, de como foram do Bangladesh num cargueiro até Singapura, das boleias no Kénia e Tanzânia, da descida de um rio qualquer no antigo Zaire de piroga durante 3 semanas,... histórias que não se ouvem todos os dias, nem de toda a gente!
"Podes fazer um sumo de laranja. Estamos no jardim fora" |
Fui dormir e senti que todo o meu corpo relaxou. Quando me levantei de manhã tinha os músculos doridos, bem sabia que o dia anterior tinha sido estafante! Ficarei aqui a próxima noite também, para descansar e ouvir mais destas histórias, preparar-me ainda mais mentalmente. Na cozinha, a Valerie tinha deixado um pequeno almoço preparado com um bilhete. Depois de comer, sentei-me a escrever e foram-me mostrando recortes de jornais que os iam entrevistando pelos sítios onde passaram. Percebi que também há algum tempo que não pegavam em algumas daquelas memórias e fico contente por terem feito questão de me as mostrar.
O livro do João e da Valérie, "Pedalar devagar", |
Dossier que levavam quando viajaram 2 anos com os filhos pela América e onde explicavam o seu projeto |
Recortes de jornais em que foram entrevistados. Neste caso, China. |
Laos |
Acho que estou a entrar um bocadinho mais num ritmo e forma de estar que é a que me acompanhará durante os próximos tempos. Levar as coisas com calma, escrever como quiser, alterar um pouco os planos, ficar onde me sentir bem. Até ser hora de partir outra vez…
Depois de almoçar, vou ajudá-los a plantar catos!
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