Translate

terça-feira, 2 de abril de 2024

Ensinando inglês e apreendendo a cultura

     Faz hoje 2 semanas desde que cheguei a El Kelaa Des Sraghna. Aqui fui recebido pelo Abdel, diretor da escola de inglês, e o Luke, um britânico que contribuiu muito para a sua fundação e que deve ser o único europeu a residir nesta cidade.

    Ao mesmo tempo que eu, estavam por aqui até há uns dias outras duas voluntárias: uma senhora de 65 anos do Canadá que se reformara há uns meses e uma outra rapariga alemã a aproveitar as férias da universidade. Esta semana deve chegar um colombiano e uma italiana.


    Os dias aqui têm sido bons. Rapidamente me acostumei ao conforto de uma cama, de cozinhar, de tomar banho todos os dias, de lavar a roupa todos os dias, ter wifi (apenas na escola, não no apartamento)… Tantas pequenas coisas que nem considerava serem um luxo naquela que era a minha vida até há umas semanas. 

    As aulas têm-me permitido conhecer esta cultura de uma maneira inigualável. Como muitos alunos são suficientemente fluentes em inglês para manter uma conversa, tenho aproveitado para lhes fazer muitas questões sobre a vida aqui, o que é normal e anormal, os costumes, perceber melhor certos aspetos da religião e com isso entender porque é que a sociedade se organiza desta forma. Tenho-me deparado geralmente com adolescentes e jovens adultos muito informados sobre o Islão, de uma maneira que diria não ser tão fácil de encontrar em Portugal relativamente ao Cristianismo.

     


Uma das primeiras aulas que dei.





    Às vezes sinto que nem toda a gente está aberta a debater algumas questões culturais ou religiosas, mas quando sinto que é possível gosto de perceber o que pensam do papel da mulher na sociedade, na família e em casa; como se vive a adolescência e universidade aqui; se é normal ter namorado/a e em que circunstâncias, porque é que é assim e porque não de outra forma. Para dar algum contexto, a visão tradicional e existente nos meios mais pequenos é de que o homem deve trabalhar e ganhar o dinheiro suficiente para sustentar a família, enquanto que a mulher deve cuidar da casa, cozinhar, tratar dos filhos; o namoro apenas faz sentido e deve existir se o casamento estiver em cima da mesa, e ambos devem ser virgens até esse momento - não havendo grande abertura ou proximidade noutros modos de relacionamento entre um homem e uma mulher, até mesmo em amizades. É importante destacar que esta é a visão geral e mais conservadora de uma pequena cidade em Marrocos, nas grandes cidades a mentalidade será certamente diferente e mesmo aqui há alguns jovens que fogem à regra e já demonstram um pensamento distinto, aceitando considerar diferentes formas de ver o mundo.


    É tentador classificar cada uma destas diferentes perspetivas como piores ou melhores, mas não me é sempre evidente se a valência que atribuo a algo é objetiva ou se é consequência de ser ou não concordante com aquilo que é normal para mim e na minha cultura. Por isso, tenho tentado essencialmente observar e falar com várias pessoas, de vários grupos sociais, e cautelosamente formar a minha opinião.






    O facto de ficar num sítio por mais de um par de dias está a ter os efeitos que buscava. Uma certa rotina, ainda que flexível, pelo facto de ter o compromisso de dar as aulas, ora logo de manhã, ora à tarde, ora à noite. Nos espaços por preencher encontro o meu espaço para explorar, estar sozinho, falar com a família e amigos, cozinhar e dormir. Os rapazes da padaria onde compro baghreir já me reconhecem e também eu já vou conhecendo os vendedores dos mercados, principalmente aqueles que falam espanhol - tenho uma banca preferida para os vegetais, outra para os morangos, outra para as laranjas. Já sei os preços de cada coisa e já sei quando me estão a tentar enganar. 

    No primeiros dia, um vendedor disse-me que o kg de morangos eram 32 dirhams (3,2€), que percebi logo ser exagerado. No dia a seguir, comprei noutra banca por 15 dirhams (1,5€) e fui de seguida perguntar-lhe o preço dos morangos. Voltou a dizer 32 e quando lhe mostrei que tinha pago 15 noutro lado desculpou-se, atribuindo as culpas ao Ramadão e ao jejum, que lhe faziam confundir os preços… Claro!





    Tudo isto se passa maioritariamente numa rua perto do apartamento dos voluntários, onde só há espaço para um carro passar de cada vez. Os passeios e laterais da estrada estão todo o dia ocupados por carroças e bancas onde se vende fruta, peixe, ovos, roupa, carne. Os burros e cavalos descansam a seu lado. É normalmente aqui que vou todos os dias.


    Nesta cidade, para além dos taxis azuis que cobram 7 dirhams (0,7€) por qualquer trajeto dentro da cidade, há também dois tipos de carroças que apenas circulam na rua principal para trás e para a frente, ao preço de 3 (0,3€) ou 2 dirhams (0,2€) - dependendo se a carroça tem uma cobertura e banco onde sentar ou se é apenas uma plataforma de madeira. Aconteceu um dia estar a ir para as aulas a pé e um rapaz que conduzia uma destas carroças me chamar para ir com ele. Insistiu mesmo eu tendo dito que não precisava e levou-me até à escola sem aceitar dinheiro!



Esta era das mais caras




Esta era das outras


    Numa onda de acontecimentos espontâneos, vinha da escola, noutro dia, já de noite e as ruas desertas, e sou convidado por um senhor que vendia cigarros numa pequena banca à beira da estrada para me juntar a ele para o iftar. Partilhámos sumo de laranja e pizza, falando um pouquinho em espanhol, até que nos despedimos como se fosse a coisa mais normal no mundo. No 3º dia aqui, quis cortar o cabelo e acabei a tomar chá com o barbeiro e outro cliente com quem passei a noite a conversar até para lá da meia-noite.




    Numa noite em que a escola organizou um iftar, fiquei a conhecer alguns rapazes e raparigas da minha idade, com quem fiquei a conversar já depois de toda a gente se ter ido embora. Enquanto explicava que tinha chegado a Kelaa numa bicicleta, um aluno da minha idade disse num inglês hesitante que já tinha ido a pé da Turquia à Sérvia no ano passado. Inicialmente pensei ter compreendido mal, mas os outros que ali estavam confirmaram-no. Este rapaz tinha caminhado da Turquia à Sérvia no ano passado, passando pela Bulgária e evitando sempre os controles fronteiriços, com o objetivo de chegar a Itália. Acabou por ser apanhado pela polícia e deportado…


    Isto é possível porque de Marrocos para a Turquia não é necessário visto e, ao que parece, esta é a porta de entrada a muitos jovens sonhadores do Norte de África e do Médio Oriente que não querem atravessar o Mediterrâneo - mas que também querem mudar de vida. Mais tarde, quis saber mais - especificamente, como soube ele da existência desta possibilidade, com quem foi e como foi. Pelos vistos, há vários grupos no facebook onde se partilham estas experiências; no youtube também se podem ver vários vídeos que documentam a travessia (se se pesquisar a tradução para árabe de “Road to Turkey” podem ver-se pessoas a atravessar rios, caminhando por trilhos e florestas e saltando gradeamentos). Chegado a Istanbul, encontrou-se com outras pessoas vindas de vários países como o Paquistão e Índia, cerca de 10, e seguiram a pé, dormindo no chão e nem sempre comendo ou bebendo. Durante 19 dias foi esta a sua vida, até que a polícia os apanhou a atravessar uma cerca que tinham cortado. Bateram-lhes com cacetetes e pontapearam-nos para os imobilzar e puseram-nos numa carrinha de volta para a Turquia. Não contou nada aos pais antes de ir nem depois de voltar, e ali estava, com a minha idade, a aprender inglês. 




Streets of Kelaa


    Outras pessoas contaram-me histórias semelhantes de familiares e amigos, por vezes ainda menores de idade, que foram bem sucedidos. Contavam-no com um brilho nos olhos. Em Kelaa vêem-se muitos carros de matrícula italiana e toda a gente conhece alguém que lá vive. Não significa que toda a gente vá por este caminho, mas muito provavelmente os primeiros foram.  


    Por causa desse iftar, eu e outra voluntária fomos convidados por uma aluna para outro iftar em sua casa. Foi das melhores refeições que tive em Marrocos e sem dúvida o melhor tagine, cozinhado pela sua avó. Passámos a noite a jogar às cartas e eu e os seus pequenos irmãos conversávamos sobre futebol enquanto víamos o Marrocos X Mauritânia. 






    Esta será provavelmente a minha última semana aqui. Quero organizar-me bem e enviar pedidos no couchsurfing para as próximas cidades. Gostava de a partir de agora ter sempre que possível alguém na próxima cidade grande que me possa acolher por uma ou duas noites.


    Seguem agora aqui umas fotos do Souk semanal que acontece na 2a feira e onde é possível encontrar de tudo!













Sem comentários:

Enviar um comentário

Estou na Mauritânia!

 A pequena câmera que apontava para mim do cimo do monitor, onde o homem de camisa registava alguns dados meus, tirou a foto que vi - mais t...