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quinta-feira, 21 de março de 2024

El Kelaa des Sraghna


        Saí de Marraquexe ainda antes dos meus amigos e eles puderam ver-me a equipar a bicicleta e fazer-me à estrada. Estava imenso calor e já estava a suar antes de começar a pedalar. As despedidas foram emotivas, porque até este momento eu sabia que os veria nestes dias. Saíra de Lisboa sabendo que aqui teria esta pausa. A partir de agora, não há qualquer previsão de reencontro com caras conhecidas até ao final da viagem e isso tem sempre algum impacto.





        Tentei sair daquela confusão citadina o mais rápido possível e não demorou muito até que me encontrasse numa estrada nacional, com o típico fluxo de carros e motas a que me habituara. Como não tinha descansado muito nos últimos dias e o calor era abrasador, precisava de dormir a sesta. A sombra de uma mesquita à beira da estrada pareceu o sítio ideal e aí me deitei, com a cabeça no saco azul onde levo o saco cama e o resto dos artigos de campismo, mas rapidamente apareceu o Imam com um tapete, para que não me deitasse no chão.











Acordei e a sensação era de um final de tarde de verão, agradável. Porém, parei pouco depois de ter recomeçado a pedalar, porque ao passar em frente a uma garagem em que vendiam azeite, fui chamado por uns homens que cumprimentara, ao mesmo tempo que estes, com uma cara confusa faziam um gesto tipicamente marroquino com as mãos, rodando a palma da mão para cima e para baixo. A melhor descrição possível era que pareciam pensar: “Mas que raio faz este gajo aqui com uma bicicleta cheia de malas?”. Dei a volta e fui ao seu encontro, eram 4 homens e um rapaz mais novo, perguntaram se queria descansar e comer e indicaram-me onde encostar a bicicleta. Levaram-me à casa de banho para que pudesse lavar a cara e as mãos e quando voltei haviam colocado bananas e maçãs em cima de uma mesa e uma cadeira onde me sentar.





Sabia que eles esperavam pela hora do ‘iftar’, por isso disse que aguardaria para poder comer com eles. Ficaram felizes por este meu gesto e eu fiquei feliz por me terem oferecido comida mesmo quando eles não podiam comer. Ficámos a conversar pelo tradutor e a jogar playstation e mostraram-me, entusiasmados, o que cozinhavam para mais tarde.






Soou o Adhan (ou Azan, que é o nome que se dá ao chamamento do Imam para a reza) quando nos encontrávamos sentado numas cadeiras à beira da estrada. Sem demoras, todos nos levantámos e fomos para a mesa onde já alguém havia posto um frango ao centro, tigelas com uma espécie de salada russa, outra com ovos cozidos, outra com tâmaras e uns cestos de folhados e pães. Deram-me logo um dos melhores lugares, no sofá, e enquanto cada dois deles partilharam uma tigela de salada russa, fizeram questão que eu tivesse uma só para mim. Também nunca me deixavam ficar sem pão, que usávamos como colher, nem sem sumo de banana e maçã ou chá. 





Quando terminaram ainda havia muita comida na mesa, mas se eu parasse uns momentos para descansar rapidamente ouvia


- Francisco, mange!


Depois de comermos fiquei a conversar com o Ayoub através do google tradutor. Tem 18 anos e trabalhava ali todos os dias. A sua vida era passada ali a vender azeite. Era ali que comia, era ali que dormia. Uma vez a cada duas semanas visitava a sua família. O seu sonho? Ir para Espanha trabalhar para ajudar a sua família. Explicou-me que há pessoas que, encontrando um contrato de trabalho para marroquinos para um país como Espanha ou Itália, o vendem a estes muitos jovens e homens que sonham assim mudar a sua vida e a dos seus.


           - Mas não tens medo de te desiludir? De chegares a Espanha e perceberes que as coisas não são como pensavas?


           - Desilusão era nem conseguir ir e não poder ajudar a minha família.



É importante ampliar a foto para ver do que falávamos.


É surpreendente que as condições e o local em que se nasce possa ter uma influência tão grande naquilo em que se sonha. Eu sonhava fazer esta viagem porque me desafia - quero conhecer outras realidades como esta - mas a razão principal é por prazer, porque me faz feliz e porque me faz sentir realizado. Se por alguma razão não a conseguisse fazer, por restrições monetárias, temporais ou pessoais, sentir-me-ia desiludido, mas a minha vida continuaria com imensos outros caminhos alternativos que consigo intuir que me fariam igualmente feliz. Nestes casos, o que vejo são jovens da minha idade que sonham com algo que, para além de ser muito mais difícil e envolver muito mais variáveis incontroláveis, não têm esperança noutro qualquer rumo para as suas vidas. Parece-me que muitos sabem exatamente o tipo de trabalho que teriam, por exemplo, em Espanha - trabalho agrícola é o mais comum - mas estão dispostos a qualquer coisa que lhes pague mais para que a família viva melhor.


Estão a apostar as fichas todas, e em muitos casos por vias ilegais, porque isso lhes permitirá melhorar a vida da sua família aqui. 





A cama que me prepararam.


         Dentro daquela garagem ou telheiro - é um pouco difícil de descrever aquele estabelecimento - havia uma pequena plataforma acessível por escadas, onde vários colchões estavam estendidos no chão, onde dormiam. Disse ao Ayoub que tinha o meu próprio colchão e saco-cama, que não se tinham de preocupar e que podia dormir em qualquer lado, mas ele insistiu em dar-me uma cama. Fui deitar-me cedo e fiquei com a impressão de que algum deles deverá ter dormido no chão apenas tapado com o cobertor, porque não haviam colchões suficientes para todos em cima e em baixo da plataforma.


Quantos de nós faríamos isto tudo por um marroquino que passasse em frente a nossa casa de bicicleta? Porque temos nós tanto medo do outro? Já há algum tempo, desde que tive contacto com pessoas de outros países árabes ou do médio oriente, que me questiono qual será o tamanho da desilusão se estes visitarem o meu país. Porque quando eu visito o deles sou acolhido, bem tratado, partilham comigo o que têm porque venho de longe e sou diferente. Creio que isto não aconteceria no meu país se a situação fosse invertida, e ainda assim somos nós que temos receio deles.






Saí cedo, depois de me despedir. Queria chegar a El Kelaa des Sraghna o mais cedo possível para descansar. Tinha sido aceite num projeto de workaway numa escola de línguas. Ensinaria Inglês e Espanhol e em troca teria um quarto num apartamento partilhado com outros voluntários.


Já tive os meus primeiros dias de aulas, dei uma de inglês a estudantes principiantes e outra a uma estudante no nível intermédio. Hoje já dei uma aula agora pela tarde a um senhor e um rapaz. É engraçado estar deste lado e sentir que consigo explicar-me e fazer-me entender e ser chamado de "teacher" por pessoas com quase o dobro da minha idade. Estou satisfeito porque tenho sentido que estou a conseguir ensinar qualquer coisa e a partir de agora já saberei melhor como me preparar em função do nível de cada um. 


A cidade em si é muito pouco ou até mesmo nada turística. De cada vez que saí à rua alguém me pediu dinheiro porque não estão habituados a ver ocidentais, algo que não aconteceu em nenhum outro lugar de Marrocos até agora. Ainda só aqui estou há uns dias mas estou a gostar da sensação e da diferença. Tenho de deixar passar mais algum tempo para realmente perceber esta realidade.


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