À saída de Larache, quando estava prestes a deixar a estrada principal para entrar por outra de terra, um ciclista que vinha atrás de mim chamou-me. Tinha-me visto no outro dia na loja do Ahmed e reconheceu-me. Aconselhou-me a não ir por aquele trilho, que era muito complicado e que seria mais fácil dar uma outra volta que ele me mostraria. Fomos um pouco juntos até El Aouamra, eu tentando acompanhar o ritmo de quem leva menos 30 ou 40kg na bicicleta e ele esforçando-se para não pedalar demasiado rápido.
A certo ponto, chegados a um cruzamento, disse-me que devia seguir sempre em frente e eu lá fui contornando os vários buracos na estrada, quais pequenas crateras. De ambos os lados, campos e campos de estufas e plantações, de morangos e laranjas e bananas. Parei numa pequena paragem de autocarro a descansar e comparti umas tâmaras com outros dois homens que ali esperavam o seu transporte de volta a casa, depois de um dia de trabalho no campo.
Sentia-me bem por isso tinha vontade de pedalar até haver luz. Fui passando por várias povoações sem nome no mapa, em que a estrada se distinguia por nela não haver casas, areia ou lixo, porque dos lados isso era tudo o que havia. No meio de garrafas de plástico e restos de roupas e comida, pastavam ovelhas e burros e ocasionalmente crianças faziam fogueiras. Essas mesmas crianças eram as que, ao me ver, corriam e gritavam por mim no pouco inglês, francês e espanhol que sabiam, à semelhança do que acontecia na porta das escolas por onde passava e em que de repente me tornava o centro da atenção.
Ficou-me especialmente marcado na memória quando, já ao final do dia e perto do final das aulas, passava em frente a uma grande escola localizada um pouco fora da vila. Errei no caminho e tive que voltar atrás, o que significava passar à frente da escola novamente. Se da primeira vez as crianças estavam aglomeradas à porta, esperando autocarros ou fazendo tempo, quando voltei atrás fui exatamente em sentido contrário a todas as carrinhas escolares e grupos de alunos que percorriam aquela estrada para irem para as suas casas. Bastou verem-me ao longe - o vermelho dos alforges não me ajuda na camuflagem - para começarem a gritar e a esticar os braços para me cumprimentar, ao mesmo tempo que outros rapazes, mais novos, corriam dos bosques o mais rápido que podiam a tempo de verem um qualquer maluco que ali passava numa bicicleta cheia de malas.
Isto também acontecia quando, na estrada principal, passava pelos mercados locais onde tudo acontecia ao mesmo tempo - venda de fruta, pão, artigos em 2a mão, roupa, carroças de cavalos estacionadas, gente a atravessar a estrada sem critério - e a minha passagem fazia tudo abrandar por uns segundos.
Andava já há uns dias a tentar perceber se acampar no pátio das mesquitas era algo possível ou não. Ou se pelo menos seria a mesquita um lugar onde poderia pedir ajuda. Da informação que obtive, parece-me que sempre tentariam o seu melhor para me ajudar - e foi com essa ideia que, ao chegar perto das 17h, decidi entrar na mesquita vermelha de um pequeno aglomerado de casas. Tinha um pátio grande, cercado por paredes. Apareceu um miúdo e mostrei-lhe uma foto da tenta no telemóvel e apontei para aquele chão, a sua reação revelava alguma incerteza mas rapidamente chegou o Imam que me disse não haver problema. Disse-me para esperar um bocado, que me trariam comida, e um pouco depois apareceu o Fouad com duas bandejas com chá e bolos e um outro rapaz com um saco com bananas.
É importante mencionar do Fouad porque ele tem um coração enorme. Desde o princípio, quando cheguei à mesquita, esteve sempre a fazer-me companhia, a mostrar-me os bairros e comunicando comigo naquela linguagem que é universal: a dos gestos e sorrisos. Fomos ver o jogo de futebol onde todos os rapazes daquela aldeia ou participavam ou assistiam. Os mais novos seguiam-nos para onde fôssemos, até que desatavam a correr em direção a umas plantações do outro lado da estrada e voltavam trazendo pequenas cenouras que acabavam de arrancar, as quais comíamos à beira do campo de futebol.
Quando voltámos para a mesquita, uns homens queriam falar comigo porque não achavam que fosse seguro dormir ali e que a polícia provavelmente não o permitiria, etc. Já estava a ficar de noite e o Fouad disse que poderia ficar em sua casa, mas entre ele ir a sua casa e voltar, já me tinham indicado que podia ficar num pequeno apartamento na parte de trás da mesquita… até que 30 minutos depois, e já eu estava quase a começar a cozinhar, os mesmos homens batem à porta a dizer que afinal já não podia ficar ali, que a polícia não deixava e não sei que mais. Não sabia do Fouad e já via a minha vida a andar para trás, porque assim teria de ir procurar um sítio para acampar, já era de noite… até que ele aparece e me leva para sua casa!
Fomos ainda ao único café que ali havia, onde estavam algumas outras pessoas da aldeia. Através do google tradutor conversámos todos acerca do Islão, da vida das pessoas ali,... contaram-me como muita gente daquelas aldeias vive, não só mas também, do tráfico e contrabando de haxixe e da ajuda à emigração ilegal
- Estas pessoas não vivem ansiosas, correndo todos estes riscos diariamente?
- Não, de todo! Esses medos estão todos aqui - explicou-me um rapaz apontando para a sua cabeça com o indicador - é só não pensar neles
- Mas eu acho que nunca saberia lidar com este estilo de vida. Todos os dias estaria ansioso e com medo de que algo corresse mal!
- Isso é porque não experimentaste estas infusões! - e rimos todos, porque todos ali à exceção de mim fumavam haxixe naquele momento. Novos, a partir dos 7/8 anos, e velhos. Faziam-no várias vezes ao dia.
Mostraram-me fotos das lanchas reais onde marroquinos sonhavam por embarcar em direção a Espanha, o seu grande sonho de vida. Percebi que para eles a Europa soava quase como um “El Dorado”, onde as suas vidas iriam finalmente ser o que mereciam e pelo o qual tudo fariam. Senti-me para eles como uma porta para esse mundo, que viam como perfeito: pediam-me para tentar encontrar um contrato de trabalho para eles, perguntaram-me como funcionava o processo de obter o passaporte, queriam saber se era mais fácil todo o processo burocrático se casassem com uma mulher portuguesa ou espanhola,... e eu imaginava que pensavam mas não o verbalizavam
- O que é que fazes tu aqui? Tu que tens tudo aquilo com que nós sonhamos?
Era nisso que pensava antes de adormecer, já na escuridão do quarto que partilhava com o Fouad, deitados nuns colchões que o seu irmão fora buscar e tapados por grossas mantas. Na sorte que tivera por ter nascido onde nasci, sem nada ter feito por isso. Na injustiça que é outros terem nascido onde nasceram e isso condicionar tudo, sem nada terem feito por isso.
Antes de dormir, comeramos Seffa, que parece um esparguete muito fino, com as mãos e bebemos chá. O Fouad tinha-me pedido para escrever o meu número num papel e agora guardava-o num pequeno caderno vermelho. Com alguma dificuldade, percebi que se levantaria muito cedo para ir trabalhar nos campos - o dinheiro que ganhava era todo para ajudar a família, comprar comida e pagar as contas - e eu disse que me queria levantar ao mesmo tempo, para me despedir.
Às 5h da manhã já saíamos de casa pelo escuro da noite. Dissemos adeus e ofereci-lhe uma gola com a bandeira de Portugal. Segui pela mesma estrada ansiando que o sol subisse e via muitos outros homens e rapazes que, como o Fouad, àquela hora esperavam uma qualquer carrinha branca que os levaria a uma qualquer plantação de bananas, morangos ou laranjas onde trabalhariam as próximas 8 ou 9 horas.
Fui avançando enquanto o nevoeiro levantava, uns senhores à beira da estrada acenaram-me com um prato de tâmaras e convidaram-me para um chá. Mais tarde, havia já percorrido 30km quando vi ao longe um outro ciclista a aproximar-se. Era o Anthony, alemão e que tinha passado o último mês a pedalar em marrocos. Ia agora em direção a Espanha e depois Portugal. Gostei muito de o conhecer e senti que era boa onda. Disse-lhe para passar na loja do Ahmed se lá conseguisse chegar nesse dia, que de certeza que ele o ajudaria e lhe daria um sítio onde dormir - mais tarde vi que, após 150km num dia, o Anthony chegara a Larache e estava a descansar em casa do Ahmed.
Quanto a mim, a Zineb tinha aceito o meu pedido no Couchsurfing e ficaria em casa dela e da sua irmã nessa noite. Acabou por não ser fácil de lá chegar porque a 30km de Rabat começou a chover torrencialmente e o vento a soprar contra mim, o que me levou a avançar custosamente a 12km/h. Cheguei totalmente encharcado e fui incrivelmente bem recebido com uma mesa colorida e cheia de comida.
Tenho aproveitado para descansar e comer. Hoje vieram os irmãos delas e temos passado algum tempo todos juntos. Como amanhã choverá o dia inteiro outra vez, fico aqui mais outra noite, até Domingo. Está a ser uma muito boa primeira experiência com o Couchsurfing!
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