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terça-feira, 19 de março de 2024

Marraquexe e amigos

        Depois de ter descansado e carregado as baterias físicas e eletrónicas naquela estação de serviço moderna mas vazia, segui o meu caminho já o calor não era tanto.


A partir daí a estrada tomou um cenário do que já se avizinhava ser um completo nada e tudo de rocha e paisagem laranja e castanha. Para além da baixa vegetação, os únicos resquícios de outras cores residiam nos sacos de plástico brancos, azuis ou rosa que encontravam nos arbustos um obstáculo intransponível àquele voo livre em que por vezes o vento os levava. De resto, um sem fim de nada que acabava em grandes montes e a ocasional mesquita que se erguia de um aglomerado de casas da cor do chão. Foi um cenário espetacular e que me fez sentir o clássico mas nem por isso frequente: “Eu estou aqui!”.









Ficar numa bomba de gasolina parecia-me uma boa ideia para essa noite, dado que em cada uma por que passava à beira da estrada via sempre um qualquer lugar onde me acampar ou estender o colchão seria possível. Foi por isso que, ao passar por uma delas à entrada de Ben Guerir, me decidi a perguntar se seria possível passar ali a noite aos dois homens que aguardavam a chegada de algum veículo cliente. Nem sequer duvidaram, rapidamente me indicaram um edifício abandonado ao lado da bomba onde podia montar a tenda e dormir descansado.





        O chão daquilo que outrora fora um café estava um bocado sujo e com uma mistura de areia e vidros, mas havia uma pequena área limpa onde a tenda cabia -  ao final de algum tempo, apenas um teto acaba por ser sentido como um privilégio. Depois de montar tudo, subi ao andar de cima para ver o pôr do sol que se iniciava por trás do telheiro daquelas bombas de gasolina, lembrando um qualquer cenário de filme no deserto.



Enquanto via o pôr do sol refletia acerca do cenário que presenciava nesse momento.


A certo ponto, começo a ouvir gritos e reparo que se está a dar uma discussão entre um motociclista e outro cliente. Não percebia o que diziam, pareceu-me alguma desavença na estrada ou dívidas passadas, mas foi um momento engraçado porque culminou com o motociclista a recusar-se a sair da frente do outro veículo, mesmo quando este iniciou marcha - levando-o à frente durante uns 200 metros enquanto todos os carros que por ali passavam lhes buzinavam.



Resultado da tal discussão.

Como já era de noite, desci para ir buscar o meu fogão, panela e artigos para cozinhar, mas fui logo chamado por um dos trabalhadores da bomba para me juntar a eles para comer. Já tinham a mesa posta com chá, tâmaras, pão, sopa e pizza e mais tarde ainda comemos um tagine. Era a primeira noite do Ramadão, e é a partir da hora do pôr do sol que os muçulmanos podem voltar a comer  - chamam ‘iftar’ a esta ceia - depois da última refeição antes do nascer do sol - a que chamam ‘suhoor’ ou ‘sehri’. Neste mês as refeições são, então, um momento de ainda maior partilha do que o já muito elevado habitual.



Estivemos o resto da noite a conversar maioritariamente pelo google tradutor e a comer, observando a estação iluminada e a estrada escura que apenas sabíamos existir por a termos visto antes ali. Como um deles apenas falava árabe, inventámos o jogo de apontar para objetos e dizer o seu nome na nossa língua. Quando senti sono despedi-me dos dois e nesse momento disseran-me para dormir dentro da pequena sala de rezas, que era mais seguro e confortável, e por isso mudei todo o acampamento para lá!




Essa noite acabou por não ser incrível porque essa sala estava cheia de melgas e tive de colocar pela primeira vez a rede mosquiteira. 


Para além disso, um cão não parava de ladrar do lado de fora, mas ainda consegui dormir e tive a companhia de alguns pirilampos que distingui no escuro. Acordei cedo para tentar chegar o mais rápido possível a Marraquexe, onde poderia finalmente descansar e tomar banho. Os meus amigos viriam mais tarde.






Há sempre um campo de futebol.






Pedalar nas ruas de Marraquexe revelou-se o desafio maior que tive até agora, em termos de destreza e atenção constante. Mais uma vez, os semáforos não tinham uma autoridade muito vincada e se por alguma razão o google maps me indicava que tinha de mudar 3 faixas para a esquerda eu nem me dignava a arriscar e preferia sempre sair pelo passeio e atravessar na passadeira como peão. 


        Cheguei ao apartamento onde iríamos ficar ainda antes das 15h, guardei a bicicleta na garagem que o recepcionista me indicou e fui para o quarto onde pude tomar o primeiro banho em quatro dias, lavar a roupa e cozinhar. Perto das 21h chegaram os meus amigos e depois de matarmos as saudades saímos para comer qualquer coisa.


        Nestes dias passados no calor de Marraquexe, visitámos algumas atrações turísticas e fomos explorando juntos as ruas da cidade, provando os pratos típicos, parando nas lojas. Fez-me bem estar com amigos, poder rir e falar a mesma língua. Voltar a ter uma realidade que me é próxima, próxima outra vez. 




O Eduardo, a Matilde, a Ana, a Inês, a Andreia, o senhor do restaurante que elas acharam fofo, outro que se meteu para a foto e o Duarte.



O Duarte, Eu e a Inês.



Fizemos ainda uma tour pelo deserto de Agafay, que me pareceu uma região incrível para visitar mais tarde e com mais calma. De noite, comíamos sempre Beghrir com Nutella na varanda do apartamento, depois de umas sandes que vendiam perto da praça central por 15 dirhams (1,5 euros).



A jantar no deserto de Agafay



Estes dias também me fizeram-me perceber a realidade que um turista encontra ao chegar a uma grande cidade como esta. Uma realidade que choca por ser diferente. Choca, porque quando se visita um lugar relativamente ao qual já se tem ideias formatadas pelo que se ouviu ou se leu - e normalmente só se ouve ou só se lê acerca do mau - é muito mais fácil interpretar essa mesma realidade de maneira a validar os preconceitos com que se chegou ali. Senti que, quem quisesse ou o procurasse, facilmente conseguiria confirmar esses seus anteriores preconceitos, porque a fome de dinheiro que existe num local tão turístico pode levar a que a experiência de o visitar seja menos autêntica e mais fabricada. 


Percebi que desafiar estes preconceitos exige mais esforço e mais desconforto, e foi claro para mim que as experiências e encontros que tenho tido neste país estão a moldar a minha perceção do mundo árabe, do mundo africano e do mundo muçulmano, de uma forma que, infelizmente, poucos quererão ou poderão alguma vez experienciar. 




Num café onde me encontrei com o Daniel e a Andreia, a sua namorada.


            Por coincidência ou não, o Daniel, que tinha sido meu treinador de atletismo, também estava em Marraquexe na mesma altura! Já não nos víamos há 4 anos, e curiosamente a última vez que estiveramos juntos fora na minha primeira viagem de bicicleta de sempre, em que fora de minha casa, em Lisboa, até à aldeia dos meus avós, em Abrantes. Nessa viagem, pernoitei em Almeirim num Airbnb que no próprio dia vim a saber através do Daniel, também de Almeirim, ser do Pedro Bento, que fizera a maluquice de ir de Almeirim ao Nepal de bicicleta numa viagem solidária. Lembro-me que fomos os 3 jantar nessa noite e pude a ouvir o Pedro Bento contar a sua experiência, enquanto sonhava que um dia seria eu a fazer algo igualmente imenso.


Em Marraquexe, aproveitámos para falar das voltas e coincidências da vida, dos sonhos e inspirações, enganos e aspirações. Sem dúvida que o Daniel é mais uma pessoa que passou a fazer esta viagem comigo, e uma pessoa muito importante.


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