A saída de Tangier foi um pouco desafiante. A estrada não era nada má, mas foi a primeira vez que pedalei num trânsito minimamente caótico e em que a garantia de que, numa qualquer rotunda, o carro que nela entra ou que ao meu lado segue não tentará cruzar-se à minha frente é apenas um pouco acima de 0. E isto não é nada comparado com o que encontrarei noutras grandes cidades africanas mais a sul!
Ainda parei já quase fora de Tangier para comer um bocado de um pão marroquino, Baghir, que comprei antes de sair, e manteiga de amendoim. Pelo caminho fui sendo muitas vezes cumprimentado ao longe por quem me via e olhava com espanto - era sempre com um sorriso que me acenavam. Às vezes apitavam aqueles que seguiam no sentido contrário ou igual, abrindo o vidro e esticando o braço num leve acenar ou erguer do polgar.
A estrada seguia junto á praia, era bonito ver o mar! Entre as vistas do areal e da vegetação, por vezes irrompiam algumas barraquinhas de madeira ora vazias ora ocupadas por artigos de barro, cerâmicas variadas e de vez em quando fruta.
Passava em frente a um restaurante de beira de estrada vazio quando um senhor de lá de dentro se levanta e me chama através de gestos. Convidava-me para um chá ou para comer alguma coisa. Estava um pouco cansado por isso aceitei, mas disse que não tinha muito dinheiro
- No, no! Poco dinero, poco dinero! - disse o homem ao ajudar-me a encostar a bicicleta à porta do estabelecimento
O chá soube bem… sabe sempre bem porque é sempre muito doce! E ainda me preparou Msemen com mel, um típico crepe marroquino. Conversámos um pouco em espanhol - imensa gente fala espanhol nesta região porque estiveram ou têm familiares a viver em Espanha - e no final quando fui pagar pediu-me 2€!… Não tivesse eu já comido vários daqueles crepes em tangier por 4 ou 5 dirhams (0,50€) e não soubesse que muitas vezes o chá tem um valor simbólico e muitas vezes é oferecido, ignoraria o facto de ele me estar a pedir quase 4x mais do que o normal. Não, não é um valor grande, é verdade, mas senti-me um pouco enganado e acima de tudo frustrado por ter cedido e de só segundos depois me ter apercebido de que, provavelmente, um marroquino não teria pago o mesmo. Mais vale com 2€ do que com 20 ou 200, e ainda bem que foi já!
Após 40km cheguei a Assilah, onde à entrada da cidade havia mais um controlo policial - à entrada e saída de quase todas as cidades e pequenas vilas estava um ou dois carros da polícia e pelo menos dois agentes a ocasionalmente revistar os carros que pretendiam passar. A mim, saudavam-me sempre com um sorriso e com “Salam!”.
Pretendia ainda pedalar um pouco mais e acampar em algum local entre Assilah e Larache, e como comecei a ver que o sol já não estava muito alto apressei-me em direção a uma zona de praia que vira no mapa. O caminho até aí já começava a ser repleto de pequenos montes verdes que me lembravam os Açores, principamente a longa descida até à praia em que, com o pôr do sol em frente, se avistava também o oceano.
Aquela praia supostamente teria dois ou três restaurantes, mas, quando lá cheguei, o único sinal de atividade por ali eram dois burros que pastavam junto ao parque de estacionamento onde estava uma caravana e uns quantos cães. O alemão da caravana disse-me que ali era um lugar tranquilo e que já lá tinha ficado nas outras noites. Apressei-me a montar a tenda para ainda apanhar o pôr do sol. Com esta pressa e ainda alguma incerteza quanto àquele lugar, montei a tenda num terreno inclinado, o que teve as suas consequências no meu sono durante a noite.
Comi junto à praia e os cães e um gato observavam-me, famintos. Cedo percebi que aquela seria uma noite longa, pois não havia muita outra distração para aqueles pobres animais.
A noite foi de facto complicada, porque até os cães se decidirem a dormir e a parar de ladrar e até eu acalmar os meus pensamentos imaginando-os a rodear-me a tenda e a roerem-me os alforges, passou algum tempo. Para além disto, naquele lugar não tinha rede, pelo que não pude dizer a familiares nem amigos onde estava e já imaginava uns quantos a criar tudo e mais alguma coisa nas suas cabeças… Terei que me habituar a não estar sempre contactável, esse outro conforto a que sempre me habituara e que, sendo mais recente que a Humanidade, em alguns lugares já a suplantou. Estar incontactável não é não existir!
Quando acordei definitivamente, chuviscava um pouco e tinha um dos cães a dormir entre a minha tenda e a bicicleta. Rapidamente arrumei as coisas numa tentativa de fugir da chuva e assim que pude dei início à árdua tarefa de empurrar a bicicleta por tudo o que descera acima. Cheguei outra vez à estrada principal completamente esgotado e as pernas também me davam sinal de querer descanso. Fui meditando nestas sensações enquanto descia e subia as pequenas colinas daquela rota, cumprimentando os pastores e parando num pequeno mercado para comprar uns bolos.
O traje tradicional marroquino é assim. Branco, de corpo inteiro e com riscas pretas. As mulheres vestem-se com longas saias e um lenço colorido na cabeça.
Cada bolo custava 1 dirham, aqui sim estava certamente a pagar o preço real. Não sei quantos turistas ou sequer cicloturistas alguma vez terão parado naquela pequena banca, mas o senhor ficou feliz por me ver e convidou-me para tomar chá na companhia de outro seu amigo. À vez, passavam um longo e estreito cachimbo que previamente encheram com uma mistura de ervas e folhas secas tiradas de um pequeno saco de plástico que levavam no bolso. O cheiro, ainda que sendo semelhante ao da marijuana, era bastante mais ténue e suave. Ofereceram-me metade de um Baghir e ainda um saco de tâmaras!
Na beira da estrada era frequente ver grupos de ora mulheres, mulheres e crianças, ou homens, que pareciam algo aguardar. Via-se que até onde se encontravam haviam estradas de terra que levavam a pequenas aldeias. Esse algo que aguardavam era muitas vezes uma carrinha branca, sem nenhuma sinalização decorativa ou distintiva, que abrindo as suas portas traseiras permitia a entrada a um compartimento sem bancos onde, em pé, estas pessoas se juntariam às outras que haviam já feito o trajeto até ali. Todos me olhavam com curiosidade e com um sorriso no rosto.
Apesar de estar a gostar do dia, das vistas e da experiência, sentia que não estava a desfrutar como queria. Não me conseguia imaginar a acampar outra vez naquela noite. O cansaço acumulado estava a fazer-se sentir. Apenas desejava uma cama e nada fazer - comer e dormir. Era altura de parar um bocado.
Decidi-me a completar os 15km restantes até Larache, onde vi que havia uma boa loja de bicicletas - queria afinar as mudanças e ver se encontrava um tubo do selim mais longo - e depois procuraria um alojamento barato.
A loja do Ahmed ficava num bairro residencial de Larache. Para lá chegar tinha de subir uma estrada que me levaria a um complexo e misturado aglomerado de casas e barracas. Lembro-me de pensar que em Portugal nunca entraria por um bairro assim, mas estava em África, estava noutro lugar. Às vezes esquecemo-nos que o nosso mundo não é o Mundo…
Entre cumprimentos ou sorrisos, percorri aquelas ruas até uma garagem onde um amontoado de bicicletas enchia o exterior e o interior da mesma.
- Le deuxième touriste du Portugal! Le priemière, Marta! Marta!
A Marta Durán, outra portuguesa, havia passado 6 anos antes por aquela mesma loja numa viagem de bicicleta até à Guiné-Bissau, creio. Sabia quem ela era, já tínhamos falado e ela inclusive tinha-me dito que me podia dar algumas dicas sobre esses países! Mas não sabia que tinha estado ali, naquele mesmo lugar!
O Ahmed percebe muito de bicicletas. Notava-se pela facilidade e rapidez com que atendia os pedidos dos que ali chegavam. Tratou da minha bicicleta e ainda me ajudou com o selim, isto tudo enquanto os seus dois pequenos filhos por ali andavam a brincar com ferramentas, a tocar nas campainhas das bicicletas e a puxar os cabos e correntes.
Quando acabou, perguntou-me onde ia ficar nessa noite e convidou-me para sua casa. Infelizmente, já tinha marcado um alojamento para as próximas duas noites e tive de recusar. Fiquei triste, mas também ia ser bom ter a minha privacidade e poder descansar.
Nessa noite, fui comer a um restaurante local e barato que me recomendou o senhor da La maison Haute, onde fiquei a dormir. Comi uma sopa de peixe tradicional, tagine de frango e uma omolete. Os preços eram consideravelmente inferiores a Tangier!
Hoje simplesmente descansei e cozinhei, dei umas voltas por Larache mas não demasiado porque amanhã precisarei dessa energia. No geral, gostei desta pequena cidade. Nota-se uma grande diferença para as grandes cidades marroquinas: aqui ninguém me tentou vender nada, ninguém me chamou na rua, não me senti enganado ao pagar por alguma coisa. Estou a gostar de Marrocos e algo está a mudar em mim, mais precisamente, algumas barreiras e preconceitos estão a ser desconstruídos em mim.
Amanhã sigo em direção a Kenitra mas devo acampar algures pelo caminho. Estive a mandar uns pedidos de couchsurfing para Rabat e Casablanca, mas não sei se vou obter alguma resposta. Dava jeito porque parece que choverá 5a e 6a…
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